Antonio Cesar Gomes da Silva
Nasceu em Dourados (MS) e concluiu o curso de Letras em 2009, pela Universidade do Estado de Mato Grosso, UNEMAT. É mestrando do PPG Letras/Unemat – Estudos Linguísticos e Literários, membro da Academia Sinopense de Ciências e Letras, ASCL ocupando a cadeira 34, seu patrono é Gabriel García Márquez. É professor da rede municipal de Sinop. Escritor de contos, crônicas e poesias, já publicou e organizou livros. Adora ler, mas ama escrever.
SONETO DA ROLETA RUSSA
Ter uma arma apontada para a gente é uma das coisas mais assustadoras que pode acontecer, e se soubesse que entrar nesta farmácia eu estaria de frente com uma destas teria deixado a dor de cabeça se curar sozinha. Mas pior que o risco de a arma ser disparada contra a gente, é obrigarem a gente a atirar em alguém.
Éramos cinco pessoas; dois bandidos, o Poeta e o Carniceiro, dois funcionários da farmácia, o Farmacêutico e a Balconista e eu.
Imagina um assaltante poeta, declama poesia enquanto ameaça as pessoas. Quando eu entrei na farmácia, ele entrou logo em seguida, enquanto o Carniceiro ia encostando as portas. A primeira coisa que ouvi foi uma quadra ameaçadora:
O perigo quando surge informando
Suas regras duvidosas, lamentos.
Ofensiva revela o seu comando
Determina indefensas sem isentos.
Em princípio achei que era uma brincadeira, um artista de rua tentando ganhar alguns trocados. Ele foi ameaçando a atendente para que abrisse a caixa registradora e imediatamente pedi para ter calma. Grande erro meu, o Poeta esqueceu-se da busca frenética pelo dinheiro e com um sorriso mecanicamente insano iniciou sua tortura perturbadora.
“Vou colocar um cartucho, apenas um, numa das câmaras deste revólver”, disse ele, em seguida girando o tambor, assim ninguém saberia se a bala estava engatilhada. Ele queria ver se eu era calmo. Pedi calma, devo ser calmo, ou eu atirava com a arma ou ele atirava em mim. Por que não fiquei em silêncio, provavelmente teria ido embora e a farmácia teria perdido alguns trocados. Antes de terminar meus pensamentos o poeta já estava declamando outra vez:
Seguindo estes momentos, a coragem
Se a vida termina agora, destino
Mas se permanece, outra metragem
A sorte então responde repentino.
O Carniceiro tinha uma fome por sangue, eu sentia a morte só de olhar para ele que dizia atira, atira, atira. Era o Farmacêutico o primeiro a conversar com a sorte, eu não poderia fazer aquilo, no entanto não tinha escolha, poderia atirar no Poeta ou no Carniceiro, mas o outro não me pouparia, a bala poderia nem estar no gatilho, só eu ia perder. Poderia errar o tiro e ele sabia, então me fez colocar o revolver bem próximo à cabeça do Farmacêutico, não tinha como errar. Dava para sentir ele se despedindo da vida, eu via nos olhos dele uma súplica silenciosa me pedindo para não fazer enquanto minhas mãos tremiam com a arma em punho. O poeta fez contagem regressiva, se eu não atirasse o Carniceiro atirava em mim. Então eu puxei o gatilho...
O único barulho que se ouviu depois disso foi um breve clique, o Carniceiro expressava um rosto frustrado, o Farmacêutico ainda viverá para contar a história. O Poeta não resistiu e declamou mais uma estrofe:
Viver mais uma vez é oportuno
Um novo início lhe é agraciado
Não dissipa esta feita, logo é uno
Eu desesperado e aliviado ao mesmo tempo, porém ainda não terminava aí, agora era a vez da Balconista, tão jovem na casa dos seus vinte e alguns anos, tanto futuro pela vida, ou uma interrupção repentina para a morte. Eu pedi para não repetir, o Carniceiro virou em minha direção, imaginei ele perdendo a calma que não tinha e me findando de vez, ele sentia uma vontade decidida de ver alguém morrer.
Meu coração batia cada vez mais forte, e se eu matar alguém hoje? As chances de morte desta moça subiram para 17% nos próximos segundos e as minhas mãos causam esta subida em sua estatística, ela se desespera sem poder fazer nada para fugir deste destino, a tristeza em seu olhar me deixa terrivelmente aturdido, a contagem regressiva inicia, “três”, e se eu atirar em mim, “dois”, de qualquer maneira alguém inocente vai morrer, “um”. Puxo o gatilho novamente...
Outro clique silencia o ar atemorizado, a Balconista tem sua existência restaurada, cai no chão aos choros soluçados, temperado de alívio enquanto o Carniceiro saca sua arma e de súbito atira na direção da moça que pelo desespero passado apenas se paralisa ao ver a marca na parede ao lado de sua cabeça, duas vezes escapou da morte em meros poucos segundos.
O Poeta desta vez, furioso com o parceiro decide mostrar sua capacidade sanguinária e o que não se esperava, quem parte para o outro lado é propriamente o Carniceiro, conseguindo assim alimentar consigo próprio sua fome de sangue e morte. Agora apenas dois restavam a encarar a morte, o Poeta e eu. Neste momento e recita mais uma estrofe de seus pensamentos insanos:
Segue a trilha, o medo foi curado
Quem fica leva o sorriso da vida
O efeito é alegria renascida.
Enquanto o Farmacêutico e a Balconista expectam num canto, desejam que seus papeis estejam finalizados nesta trama, o Poeta esclarece a parte final de seu jogo insano. “Você aponta para você e atira, se tentar contra mim, mesmo que em pensamento e atiro primeiro”, eu não tenho escolha, se eu atirar nele ele me mata, a bala pode não estar engatilhada, só eu perco. Uma confusão espalha em minha cabeça, já não consigo raciocinar acertadamente, neste momento devo seguir meu conselho de manter a calma.
Ele aponta uma arma para mim, sorri enquanto me espera acomodar o revolver em minha testa. Não podia enganá-lo, apesar de desejar apenas um clique, neste instante já nada me importava, tinha aceitado o fim, “três”, resumi toda minha vida até aquele momento, se tinha feito valer a pena, “dois”, todo meu futuro que talvez não sucederia, “um”, neste momento fecho os meus olhos e puxo o gatilho pela última vez...
Ao abrir os olhos, não vi ninguém na farmácia, além do corpo do Carniceiro no chão, pensei estar morto, mas me sentia muito vivo. Em minha mão o revolver ainda sorria esperando uma bala disparar, abri e girei o tambor do revólver, um súbito ataque de riso tomou conta de mim, um alívio maior que a vontade de viver me fez procurar o Poeta que já tinha se evadido. Ele também sabia fazer piada, muito sem graça, mas em algum lugar o assaltante também sofria um ataque de risos, sua piada macabra em nenhum momento foi fatal, pois nenhuma bala estava no tambor.