Ângela Coradini
É poeta e editora na Ruído Manifesto. Com Doutorado em Cultura Contemporânea, atua como roteirista e diretora de curta-metragens e estuda filmes e séries com temáticas de futuridade e fantasmagoria. É autora do livro “Imagens-espectro de futuridades no Amplo Presente”, pela EdUFMT, e do livro de poesias “Já não podem ser amanhã...”, editado pela Carlini e Caniato, ambos no prelo.
QUERIA TE CONTAR
queria te contar
desses retalhos de vida
sem que as minhas arestas
rasgassem teus véus
essa tua imensidão
tão extrema
precisaria te dar distância
e só assim haveria como esmiuçar
cada granulado da tua luz
cada água da tua voz
que me inunda
que se tece em mim
feito raízes...
cavando
por debaixo da minha terra
tão velha
revolvendo
por baixo das minhas querelas
tão ansiosas
nada razoáveis
já mofadas e sem desfechos
queria te falar de mim toda
sem que a toada dessas frases
rompesse o raio oculto desses teus olhos negros
pequenos
e fundos
que me calam, tão fixamente,
e que eu sempre soube
me desafiariam
até o último instante
queria me apagar
como feita em linhas de giz
apagar
as pernas, a boca,
a mente, a voz
e evaporar
fazer-me neblina opaca
fazer-me menos do que já sou
ser esse pó
de ausência
ir-me dessa cronologia
para aquela ainda sem tempo
queria ser só uma sensação
ainda não sentida
um momento
ainda desconhecido aos teus dedos
ser uma falta
ser um silêncio
um vazio anuviado
que ainda não rasurou o teu rosto
queria poder planar
sempre
a um rastro da existência tua
e nunca ser retida
queria em ondas
romper tuas roupas
trançar meu hálito
em teus pelos, em teus cabelos
e roçar
na pele áspera dos teus pés
ser um manto pra ti
sem que me retire
ser tua noite escura e fria
sem que te arrepie
te transpassar
sem que você pudesse me definir
com um sentido
queria adentrar teu olfato
como nada além
do gelado do vento
queria estar ali
sem face
sem nome
só enquanto algo que pode te irromper
só queria ter a presença de não estar
mas levar em mim a energia
o brilho
do que compomos enquanto em dança
do que criamos
em confabulação
em carne
em respiro
só queria ser o caos
que precede teu riso
que torneia bamba as tuas ideias
ainda sem data para acontecer
queria ser sempre algo da vida
uma parte da tua alma
sem ter de me pôr
a cada manhã
fixa
em par