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Ana Fátima (Cruz dos Santos) 
É oriunda de Salvador-Bahia, licenciada em Letras Vernácula, Mestra e Doutoranda em Crítica Cultural (UNEB). Ativista do movimento negro, Iya Egbe do Ilê Axé Iboro Odé, educadora e CEO na editora Ereginga Educação. Realiza formações continuadas para professores e oficinas sobre Contação de Histórias infantis. Enquanto escritora de Literatura Negra tem poemas publicados no site da Fundação Palmares (2010), no Projeto Escritoras da Bahia (2015), no Projeto Pé de Poesia (Salvador, 2016), além de poemas e contos pela Antologia Cadernos Negros (Quilombhoje, 2014 a 2019) e Mulher Poesia I, II, III, IV, V (Cogito, 2016-2021). Recebeu prêmios literários, mantém disponível aos leitores o blog “Sangue de Barro” (negronapreta.blogspot.com), organizou a coletânea de poemas e contos Outras Carolinas: Mulherio da Bahia junto a Anajara Tavares e Lia Sena (2017). Enquanto uma das Acadêmicas fundadoras na Academia Internacional Mulheres das Letras, Ana Fátima é ocupante da cadeira 051. Em 2020, foi uma das finalistas no 62º Prêmio Jabuti de Literatura com a Antologia Cadernos Negros - contos afro-brasileiros. É autora de literatura infantil: Makeba vai à escola (Cogito, 2019, edição bilíngue), Tunde e as aves misteriosas (Editora Ereginga Educação, 2020, edição trilíngue), Tunde and the mysterious birds (Editora Ereginga Educação, 2021, edição inglês/Libras), As tranças de minha mãe (Editora Ereginga Educação, 2021) e o livro de poemas Já fui água um dia (Penalux, 2019).

UM DIA PARA SEMPRE

Não era diferente o clima, nem o ambiente, nem os rostos afogueados de emoção e o clamor era desconhecido. Mas ali estava um novo momento pra recomeçar. 
Dia de manifestação na cidade. Há algum tempo, pareceu renascer das veias da população um grito pela justiça de anos adormecida no imaginário dos teimosos. Várias eram as lutas, assim como muitas eram as vozes: saúde de qualidade, mais segurança, menos impostos, transporte coletivo adequado às demandas da comunidade. O pedido de urgência era para a bendita passagem dos mais variados veículos de locomoção na cidade, engasgados no trânsito de pedestres e conflitos sociais.
Foram muitos os comentários, acertos e erros pelas redes sociais que afogueavam as discussões a respeito das competências referentes às instituições públicas e tomadas de decisão arbitrárias, sem a opinião popular. “Onde está a democracia?” – contra-argumentavam vozes embriagadas de raiva e reparação. 
Os manifestantes exibiam cartazes como se eles fossem armas contra o peito; traziam em seus gritos de guerra mensagens de encorajamento e desafio à milícia. Partidos? Todos os partidos (fatiados) políticos procurando uma vaga em meio à multidão, mas logo eram enxotados e pulverizavam no ar. As pessoas não se deixavam mais suportar pelo gás tóxico que eram as promessas politiqueiras sem grandes expansões satisfatórias a todos... Existem pesquisas que comprovam o baixo contingente de afiliados nos polos Esquerda e Direita.

Em meio ao povo, Abayneh levantava sua bandeira verde-amarela, e, assim como os demais, exibia no olhar um patriotismo reluzente, cintilando esperanças em cada palavra lançada no ar. Era sua sede de liberdade. Mesmo em tempos de democracia, sempre há uma ditadura investida em mídias, camisetas e Nikes. Não seguia só: um amor o acompanhava em muitas batalhas: Rita. Turbanteira de primeira qualidade, brilhava como estrela no céu todos os dias; era muita beleza junta à garra de mulher, reafirmando a cada olhar, cada gesto e poesia a negritude de sua ancestralidade. A dupla era boa e conduzia bem muitos projetos para além da casa, roupa lavada e comida na mesa. Eram parceiros de luta.

O capital e suas contradições guiavam, fortemente, o passo de muitos dos seus amigos que, por sinal, também se encontravam vibrantes em meio a rojões, coquetéis molotov e pedras voadoras. Às vezes, passava por sua lembrança em meio àquelas vozes e atuações, teorias lukacsiana vistas em uma certa disciplina da faculdade de Ciências Sociais que cursou no início do curso. Aliás, estudar em uma faculdade pública, além de desafio, soava, para muitos, como uma ousadia, uma afronta aos “bem dotados”, e ele estava ali, no centro da luta: estava se apoderando do seu direito de ecoar críticas e “palavras de ordem”. 
Contudo, Abayneh convertia as ofensas e resmungos em marcas azuis de um boletim impresso em branco e preto: branco era seu sorriso largo e preto era o seu olhar rumo ao horizonte enluarado envolvido à sua pele tão preta que desenhava um diamante reluzente naquele piche natural. Por vezes, em sua caminhada acadêmica junto a outros irmãos de cor, vociferou: - Ser negro nesse país de capitãs do mato e colonizadores é um desafio contra a maré de exploração aristocrática. Precisamos ter sangue no olho e punho firme, fechado pra dar na cara desses racistas.
Os colegas o achavam louco, ou extremista, mas nada desses “achismos” e deduções sem fundamento metodológico abalavam a política aguerrida do jovem ativista. Afinal, um dos seus lemas era “Se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo”. O poeta Limeira sempre seguia à frente de suas expressões artísticas.

(Abayneh era um rapaz tranquilo, sem muitas questões. Reservava a maior parte do tempo para estudar e ler todo tipo de literatura. Muito lhe interessava estudos filosóficos que refletissem sobre a linguagem etc. Na família, Abayneh era um grande orgulho: primeiro e único universitário entre os primos e vizinhos da comunidade Barro Pisado. Muita semente plantada para isto, além das renúncias às festas, baladas, encontros amorosos, conversa fora... tudo descartável diante da imagem do futuro antropólogo. Muito chão pra Abayneh caminhar).

Quem assistia dos prédios aquele cenário no centro da avenida, em breve, recordaria reportagens sobre o pós-guerra ou conflitos entre palestinos e afegãos. Não muito estranho em se tratando de Brasil – lugar onde tudo se encontra e pouco se encanta –, mas estava valendo tudo naquele momento. Era muita adrenalina, muita cucanolance, várias pautas em questão. 
Passos firmes à frente. Em punho: cartolinas borradas com tintas e pilotos coloridos, apitos, camisas com frases estampadas, megafone a todo vapor e uma fervura na pele, que por horas era um vulcão silencioso que iniciava o espreguiçar em plena Av. Joana Angélica. Sim! Salvador é um formigueiro concentrado no Centro Comercial para mobilizar periferias.
Botinas ristes. Apontadas: bomba de gás lacrimogênio, spray com gás de pimenta, algumas “fantas” e balas de borracha. Por enquanto, apenas os militares permaneciam estanques no local preparados para impedir qualquer mosca de atravessar o bloqueio. A tensão que inspiravam fazia expirar ódio e exalar frustrações pelo céu azulado daquela manhã de março.
Abayneh liderava uma parte do grupo, gritando por justiça aos corpos negros estilhaçados todo fim de semana e pelas almas torturadas nas segundas, terças e demais feiras do país. Por momentos, compactuava com seus colegas de luta: - Não deixa o espaço aberto... aperta ai!! Vamos gritar mais alto e forte, manos! Não desanima. Essa é nossa.
Os nervos exaltados. As pupilas enfurecidas diante da indiferença governamental. Faixas à frente, botinas também. Braços hasteados. A polícia insistia no bloqueio e no avanço contramanifestação. Sujeitos na defensiva. Pontarias em ataque. Abayneh exibia um peito inflado de emoção e certeza da vitória. Um molotov voou e caiu aos pés dos Botinas: pronto! Estava instaurada a guerra. 
Sem pestanejar, bombas de efeito moral (muito amoral) seguiam como aves de rapina pelas cabeças dos “caras pintadas 2”. Estes, muitas posições: respondiam com pedregulhos a jato; gritos de agonia; correria desordenada. 
- Corre pros lados, gente! Não se afasta muito não... já ganhamos essa! Conduzia Abayneh, confuso, ofegante e agitado.
- Cê tá maluco, brodi? Questionou Toni, amigo de piculas, arraias e corridas de bicicletas pelo bairro desde a infância. – Os Botinas não tão de brincadeira, não! Querem meter granada em nós!
- Se nós desistirmos, aí é que eles caem pra dentro! Emocionado, Abayneh insistia na união do grupo.

Em meio ao nevoeiro de bombas e vozes aprisionadas no ar igual a uma concha presenteada pela rainha das águas salgadas, Abayneh paralisou os movimentos ao perceber a guinada do seu destino. Mais à frente, Botinas marchando. Ouviu um estampido. Como lança afiada, a bala saltava da cápsula, e certeira trafegava em seu objetivo. Aquele disparo tinha tanto sentido quanto os disparos que o coração do jovem estudante fazia. 
Neste segundo diante da fera quente e avassaladora, via-se ele no limbo das diversas linguagens daquele objeto. Rizoma em plena praça de guerra. Energicamente, engatilhava os cartazes como possibilidades cambiantes e divergentes: Geração - queremos escola! Mensaleiros na prisão. Queremos escolas e hospitais no padrão FIFA. Sexo e amor, sacanagem é R$2,95 na passagem. Homofobia é crime: queremos Felizduano preso.
Cargas de perguntas no peito em forma de algodão e poliéster: Seria uma luta coletiva? Estaria, eu, convicto dos motivos de militância junto a essas pessoas? Será que ficar em casa, estudando Ginzburg e seus “mitos, emblemas e sinais”, como o exigido e aconselhado por mainha, não teria sido melhor? Com certeza era mais confortável. 
Estava ali diante de um paradigma e tinha que interpretar aquelas pequenas pistas deixadas na sua vida até então. Toda a sua trajetória escolar e de militância era confusa, seguia rompantes de classe operária com métodos de classe burguesa. Nada disso favorecia à dialética que era sua vida real: preto, filho de trabalhadora doméstica, seu pai era apenas uma foto amarelada no fundo do álbum de retratos e sua dinâmica diária era fazer “bicos” para as gráficas soteropolitanas sem projeção de carreira ou futuro profissional. O fim disso era “almoço do dia” e transporte da semana para o itinerário casa-faculdade-trabalho-casa.
A vida sempre prega peças ardilosas nos caminhos mais cambiantes de seus escolhidos. Mas isso tudo não desenganava o sucesso que aquele rapaz negro se propunha a cumprir. Havia de vencer na vida e levar outros amigos consigo. Se não era promessa, passava a ser uma dívida.
Mas agora estava Abayneh ali, diante da sua oportunidade ou anulação dos sonhos, seus segundos se esgotavam e não queria pensar mais na “pátria amada”. Não queria viver na ilusão que conhecia de tudo, quando, na verdade, cada dia era um ato de conhecer. Construir e reconstruir os passos dados. Compreendia, neste instante, que sobrevivia no mundo diferentes de seus amigos de chope nos fins de semana no Alto do Itaigara. 
Era tudo muito diferente. Sentia, enfim, o ponto final da bala. Aquele corpo que antes brilhava como lua cheia em noite escura, tombava no asfalto fervente e fétido. Resolveu desviar o olhar com o flash do ato, mas recuperou a força das pernas e correu na direção de Rita... a blusa branca pacificadora foi tingida com o vermelho vibrante da pureza de seu seio firme e cheiroso. 
Abayneh lembrou da noite anterior: cartolinas coloridas, pinceis atômicos nas mãos, poesias ao vento, movimento negro inteiro e programando a organização espacial da manifestação. Rita separou-se das amigas por um momento após receber seu bilhete: desejo sua carapinha encrespada nas minhas tranças dreadlooks. Rita abraçou o namorado e deu seu beijo vívido como sempre o fazia nesses oito meses de namoro e militância contra o racismo que limitava seus passos de cidadãos nessa diáspora africana. Rita agora era a certeza de um sonho bom. Na frente da batalha, enfrentando as botinas pretas estavam apenas os braços e pernas pretos que sempre foram mirados e marcados com as balas amargas que hoje levavam Rita para o orum. 
Abayneh passou a ver Rita nos seus pensamentos como um índice semiótico no traço de sua contínua batalha dos seus e pelos seus escolhidos há séculos por outrem para serem eliminados do jogo da vida. A manifestação parou por secos instantes para recolher o corpo de um homem negro alvejado por alguém que a mídia não sabia responder quem. Após sua saída quase muda, as vozes de protesto seguiam tão longe que a vida pareceu normal ao longo das avenidas apertadas soteropolitanas.
 

© 2019 - Revista Literária Pixé.

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