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Agnaldo Rodrigues
da Silva

É pós-doutor da Universidade do Estado de Mato Grosso e membro da Academia Mato-Grossense de Letras/Brasil. Como autor de criação literária (contos), destacam-se os livros: A penumbra (2004), Mente Insana (2008) e Dose de Cicuta (2010). Das muitas obras de crítica literária, citam-se: Projeção de mitos e construção histórica no teatro trágico (2008), O teatro mato-grossense: história, crítica e textos (2010), Escritos Culturais: literatura, arte e movimento (2013), para além de obras em co-autoria, tais como: Nas entrelinhas do texto (2012), Esse entre-lugar da literatura: concepção estética e fronteiras (2013), Diálogo entre literatura e outras artes (2014), Do texto à cena - entre o teatro grego e o moderno teatro brasileiro (2014), Plínio Marcos – o signo de um mau tempo (2016), Trajectórias culturais e literárias das ilhas do equador – estudos sobre São Tomé e Príncipe (2018).

O CUMBARU DE OURO – UMA LENDA URBANA

Era noite em São Luiz de Cáceres. Céu limpo com estrelas que iluminavam majestosamente o tempo. O vento favorecia o farfalhar das folhas, um barulho que se diluía nos mistérios da noite. No sítio, que ficava lá pelas bandas do Lavapés, reuníamos sempre na casa da vovó, onde fazíamos brincadeiras de rodas ou pique esconde, enquanto os adultos conversavam sobre as vidas dos outros, assuntos domésticos ou coisas de igrejas. No final das reuniões, sempre chamavam as crianças para que os mais velhos contassem causos, geralmente aqueles que habitavam a órbita do fantástico, estranho ou maravilhoso. Os menores ficavam sempre assustados, com os olhinhos arregalados, porque narravam estórias sobre lobisomens, bruxas e lugares encantados. Acreditava-se que muitos deles andavam por aquelas bandas. Íamos para casa, segurando firmes nas barras das saias de nossas mães, tropeçando, e sempre olhando para trás. 


Naquele dia, a proposta foi a contação da lenda do Cumbaru de Ouro. Vovó estava no centro da roda, quando arregalou os olhos e disse com seriedade e mistério:  esta estória é verdadeira crianças! Quem duvidar, passe pelo Cumbaru e desafie os seus mistérios! O coração gelou, bateu ofegante, um arrepio tomou conta do meu corpo. Puxa, vovó sabia mesmo contar um causo e prender a nossa atenção! Nossa avó era sozinha, o marido havia abandonado a família, por isso criou com sacrifício os filhos, que não eram poucos. Vestia sempre um vestido de chita, típico das vovós daquela época e que moravam afastadas da cidade. Engraçado é que ela sempre elegia o vovô como protagonista das histórias, e achávamos que tudo era verdade, porque quanto mais próximos da realidade eram as personagens, os fatos pareciam mais reais.


Antônio Guampa, o avô de vocês – narrava vovó – desceu à cidade para vender raízes, mas foi um tanto avançado da hora, quanto era de costume. Terminado os afazeres, ele resolveu molhar a língua com água ardente no Bar Pinguim, aquele boteco que fica em frente da Praça Duque de Caxias, no Centro. Entre um gole e outro, e conversas que vem e vão, o tempo passou rapidamente. “Quando o papo fiado é bom, a cachaça parece ficar mais gostosa”, assim ele costumava dizer. Quando lembrou de voltar, era quase meia noite, então jogou o dinheiro amassado sobre o balcão, catou as compras que tinha feito, e saiu de qualquer jeito caçando o rumo de casa. 


Ah, coitado! Na pressa, ele tomou a Rua Tiradentes que se encontrava com a Rua Lavapés, mas, com certeza, a pinga o fez esquecer que no entroncamento entre as ruas havia o Cumbaru de Ouro. Sim, crianças, o misterioso cumbaru! Conta-se que atrás do tronco dessa árvore há um precioso tesouro escondido, um baú cheio de ouro. Antigamente, – narrava vovó, que por sinal já era também antiga –, não existia bancos, nem cofres para que as pessoas guardassem suas fortunas. Por isso, elas colocavam seus tesouros dentro de baús e enterravam, geralmente atrás de uma grande árvore. Muitos materialistas morriam deixando suas fortunas enterradas, mas voltavam para cuidar os seus tesouros, tornando-se almas penadas. Elas sempre eram vistas nos lugares onde enterraram suas riquezas, aparecendo entre a meia noite e uma hora da manhã. 


O avô de vocês vinha a passos largos, cabeça baixa, fungando o início de cansaço. A poucos metros, lembrou-se da árvore amaldiçoada. Suspendeu a cabeça e lá estava o cumbaru. Os galhos a balançar. As folhas mexendo-se com o vento da quase madrugada. Olhou no relógio, coçou o queixo como era de costume quando ficava em dúvida, deu de ombros e disse: 


– Seja lá o que Deus quiser! Se a assombração não me matar, eu ficarei rico.


Benzeu o corpo e seguiu adiante. 


Quando se alinhou ao tronco, uma porta entre mundos abriu-se. Os pés formigaram, uma câimbra subiu pelas pernas, impedindo-o de prosseguir, um frio na barriga gelou o estômago e, com cara de espanto, viu surgir uma luz que pouco a pouco tomava forma de mulher. Com as mãos, ela fez um gesto para que ele a seguisse atrás do cumbaru. Lá estava a reluzir um baú entupido de ouro, diamantes, safiras, esmeraldas e rubis. Uma fortuna incalculável! Uma corrente grossa e pesada prendia o baú ao tornozelo daquela alma. O vento mexia seus cabelos longos e o vestido branco, sintonizados ao brilho resplandecente das joias que quebravam a escuridão da noite. Com os olhos fixos, ela trincou o silêncio com voz imperativa:


– Liberta-me! Quebre esta corrente e torne-se rico. Deixe a tua família, abra mão da tua vida e venha morar comigo!


A mulher de branco colocou aos mãos no baú e retirou um machado bastante afiado, que talvez fosse para cortar o metal que a aprisionava. Mas o susto superou a coragem, o Guampa jogou o saco de compras no chão e ao grito do “creio em Deus todo poderoso”, desembestou rua afora e só parou de correr quando adentrou por aquela porta da sala, molhadinho de suor, a dizer coisa com coisa. Eu perguntei-lhe sobre as compras e o dinheiro, então ele me contou essa estória. Como estava bêbado, imaginei que tivesse inventado tudo para justificar o gasto ou a perda do que havia recebido pelas vendas. Ao acordar não disse nada. Tomou o café, pegou a enxada, a foice, a matula preparada e saiu rumo à roça. Findou o dia, varou a noite, o dia seguinte e outros dias. Ele nunca mais voltou. 


Ao término da estória, os olhos da vovó encheram-se de lágrimas. O tempo parou por alguns instantes, como se ela estivesse revivendo memórias esquecidas. Levantou-se, pegou a lamparina, entrou na casa, fechou a porta. Depois, todos levantaram e foram para suas casas, na certeza de que vovó havia tido aquela experiência única do cumbaru de ouro. Pouco tempo depois, papai e mamãe decidiram mudar para a cidade, porque nós precisávamos estudar. Nunca mais tivemos aquelas rodas de causos na casa da dona Maria Joana. Algum tempo depois, ela nos deixou.


Muito tempo depois, eu já adulto, lá pelos meus 25 anos, fui a uma festa na casa de amigos. Na volta, desci a Rua Tiradentes para pegar a Lavapés e, enfim, chegar à Cidade Alta. No trajeto, deparei-me com o pé de cumbaru, altivo, misterioso, histórico, memorialístico. Lembrei daquela noite de conversa na casa da vovó Maria. Parei embaixo da árvore, alinhei o corpo com o tronco. Fechei os olhos e respirei fundo. Aos poucos entrou pelas minhas narinas centenas de saudades que invadiam a alma. Consegui sentir o cheiro da infância, do pé de abacate, da goiabeira e do bananal. Parecia que eu estava no sítio daquela época, em uma fusão de tempo e espaço, presente e passado. Abri os olhos, olhei no relógio, era meia noite. Não senti meus pés formigarem, nem cãibra nas pernas; muito menos vi a mulher que deveria sair detrás do pé do cumbaru para me ofertar o baú de riquezas. Balancei a cabeça e dei uma risada que, de certo modo, lançava aquele relato na rede das crendices populares. Olhei para trás e ao longe vi surgir alguém. Firmei os olhos e percebi que era uma idosa, tinha os cabelos branquinhos e presos, usando um vestido de chita. Senti um frio na barriga, pois parece que o passado vinha ao meu encontro. Corri, virei a esquina e cheguei em casa sem olhar para trás. Talvez, nunca tenha passado um medo tão grande quanto aquele.  Nunca mais passei pelo cumbaru de ouro. Hoje, ele não existe mais, apenas as lembranças. As memórias sobre um terreno baldio que alimenta as lendas urbanas da bicentenária Cáceres.


Um dia desses, eu estava lendo A terceira margem do Rio, de Guimarães Rosa, assim como Nas águas do tempo, de Mia Couto. Então pude compreender o ocorrido naquela meia noite de meus saudosos 25 anos.

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