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Adriano B. Espíndola Santos

Natural de Fortaleza, Ceará. Autor do livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora, 2018. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

O BENDITO FÊMUR DE SALETE

É curioso e complexo, aqui, destrinchar o perfil de Timóteo. Está no rol dos “bem-apessoados”, da família tradicional brasileira. Assim se porta na tribuna, vigoroso e jeitoso, com roupas finas, passadas e engomadas. Pura desfaçatez de uma alma grotesca.  


Mas eu, sua irmã, o conheço. O mau do poder é um dia ruir. Mamãe lembrava: “Seus tios Aderbaldo, Ildefonso, Donizete, Aderaldo, Dulcinete e Niete, um a um, foram engolidos pela empáfia e pelo poder. Plantaram e colherem, tintim por tintim”.


Percebi que o caso estaria mais ligado ao gene ranhoso de nossa estirpe familiar. Perdi as contas de confusões e mortes em que nos metemos – nem sei quantos se salvaram. Ponho a mim na história porque pago as moléstias hereditárias; os reveses de outras vidas, sem fim.


No dia dezesseis, às 14h32min – gravei pelo relógio na parede –, sem mais nem menos, Timóteo me surgiu suado e afobado, balbuciando: “Arranja um lugar para esse pacote! E tem de ser aqui, logo!”. Aqui, que ele se referia, era a casa de nossa santíssima mamãe, uma velhinha de noventa e dois anos, acamada, cuidada por mim; portanto, só eu e ela estávamos lá; apenas eu e ela recebíamos as visitas “fora de hora” de Timóteo e de outros – pouquíssimos – familiares. Ninguém, de fato, se importava conosco. 


Quando ia perguntar, buscar alguma informação complementar, para entender o fim que daria, ou nos levaria, Timóteo foi largando, despretensiosamente, uma carteira no chão. Na verdade, um monte de papéis dentro de um porta-cartão, dos mais mixurucas, da 25 de março. Não perdi tempo, a curiosidade me matava; fui direto ao ponto. A carteira, como pensado de início, e agora comprovado, não era dele, era de um sujeito de nome esquisito: Perna-Seca. Não havia mais nenhuma identificação. Os papéis, amarrotados, estavam maldispostos. Arrumei o quebra-cabeça como se estivesse montando o mapa da mina. Desembaralhei, primeiro; depois, fui colocando cada um em seu devido lugar. Sim, era um mapa; um mapa de algum lugar que havia cruzado; não me era estranho. Subitamente, mamãe emitiu um grito gutural: “Lucinha, venha aqui, agora!”. Poxa, parecia que previa, sempre; na pior ocasião, mamãe deu de embaralhar o meu juízo. Deixei-a chamar por um tempinho. Decerto não era nada. Coitada da velhinha, não podia urinar, cagar, o que fosse de necessidade fisiológica, sem a minha presença. Possuía bolsa de colostomia, tipo cloaca de galinha; nutrição parenteral, controlada; no momento, um fêmur quebrado; alguns pinos na perna direita; péssima audição; pouca demência, mas tinha; um olho são somente, com trinta e cinco por cento de visão, que iria, mais cedo ou mais tarde, degenerar-se; artrite e artrose; e uma porção de outros achaques da velhice.


Enquanto me entretinha em conseguir decifrar as maluquices de Timóteo – um ânimo à minha ordinária vida –, que a essa altura já devia estar na capital federal, com seus ofícios sinistros, escutei um barulho horroroso, como explosão de granada – imaginei, instintivamente, assim o ser –, ou metade do céu desabando. Corri em auxílio da mamãe, uma velha-vegetal que não podia fazer muito por si. Quando passei pela cozinha, me dei conta de que as aberrações desse mundo haviam tomado proporções abissais. A cozinha estava destroçada: poeiras, blocos de concretos, tijolos para todo lado; com um buraco imenso na parede e uma pá de retroescavadeira vislumbrada no horizonte. “Que horror! Meu Deus!”, pensei diminuída. Foi aí que me dei conta de Timóteo. Liguei insistentemente para o seu celular: caixa-postal. Tentei, então, o seu gabinete, ao mesmo tempo em que olhava, ao longe, a retroescavadeira se aproximar, mais e mais. Outro estrondo. Antes de me afastar da cena do crime, por ímpeto nato de proteção, e pensando em mamãe, gritei escandalosamente: “Para, para! Pelo amor de Deus, meu senhor, nos deixe em paz!”. O operador não escutou um piu, certamente; não se viam orelhas, só um enorme protetor auricular. Fitou-me e insinuou, faceiro: “Sem chances, madame!”, com um leve sorrisinho de canto de boca. Senti calafrio e, confesso, tesão (para quem não via um homem, assim, há meses, qualquer olhar arremataria o meu desejo). Recompus-me, o instante exigia. Pensei no nível de crueldade de uma humanidade dilacerada. Se eram capazes de fazer isso a uma senhora e a uma velhinha, indefesas, não restava mais compaixão no mundo.


No momento em que a retroescavadeira pegava impulso para voltar, como um touro sedento por sangue humano, Timóteo me retornou pedindo para abrir o pacote. Disse que só seria possível se conseguisse pôr pequenas chamas de isqueiro ou de fósforo nas bordas superiores, cuidadosamente, para liberar o mecanismo de trava do pacote. Não deu outra, como já começava a conjeturar, uma ruma de dinheiro na minha frente. Gritei, pulei, querendo que a casa e o mundo se ferrassem. Nunca tinha visto tanto dinheiro em minha vida. Imaginei-me no Caribe, em Bahamas, etc. Timóteo concluiu a conversa calculando que construiriam, “num piscar de olhos”, um caixa-forte em casa, para não descobrirem o arranjo. Falou que não pôde avisar antes, pediu desculpas; a Federal estava no seu encalço. Como sempre, um exímio homem de fuga. Frank Abagnale Jr. ficaria orgulhoso do pupilo. 


Passada a euforia, fui contar à mamãe acerca do ocorrido, aproveitando o seu mirrado grau de consciência; poderia ser que melhorasse vendo a cor do dinheiro ou sentindo o derradeiro cheiro de dólar fresco, vivo. Ao adentrar em seus aposentos, no entanto, a constatação: havia, finalmente, batido as botas. Precisava de um empurrãozinho. Estava durinha na cama, praticamente igual ao pau do meu cunhado Ulisses. Não podia fazer mais nada. Também não queria perder mais tempo com algo que não teria jeito. É remar, remar contra a maré; enxugar gelo (Onde já se viu, nessa altura da vida?). Eu estava confinada e paciente, há tempos, já que a minha permanência ao lado de mamãe tinha um propósito específico: a herança certa, sem brigas; os meus irmãos me veriam como a filha merecedora, a única capaz de cuidar de mamãe; que renunciou a uma vida “normal”, com marido e filhos etc., blá, blá, blá. Aguardava, dias contados, colar a porra do fêmur, para pegar meu rumo, se a velha não morresse antes. Marinete, de sobreaviso, viria me substituir – tudo programado, graças ao empenho de Ulisses.


Mantive a linha até onde pude. Guardei o nome da família por debaixo dos panos.  para o jogo virar. Decretei: metade da bufunfa viva, apartamento em Paris, mais herança. Timóteo, inteligente, soltou o que me era devido, antecipado, com juros e correção. Agora, chapada e rica, vou fumar as cinzas de mamãe para comemorar. Ulisses foi na frente, para despistar; espera-me no meu , durão, para a orgia começar.


Extras – porque nada melhor do que comemorar os nossos próprios feitos, né?! –: para não deixar impressões errôneas a meu respeito, eliminarei os focos e possíveis rastros, um a um, tintim por tintim, inclusive o bobinho do Ulisses, como mamãe o fez, no seu tempo, e me ensinou. Somos todas cobrinhas criadas a pão de ló, venenos e tinos apuradíssimos, pouco usados, só em ocasiões especiais, estilo  ou viúva-negra, como queira.

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