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Adriano B. Espíndola Santos
Natural de Fortaleza, Ceará. Autor do livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora, 2018. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.

CINCO PALMOS

Cinco palmos nos separavam. Uma capivara em miniatura. Tenho essa mania, de transformar pequenas criaturas em membros da mesma família, sendo que maiores. Meu gato Sunshine, por exemplo, grandíssimo e poderoso, e selvagem, muitas das vezes, porque ainda guarda as características mais ínsitas da natureza, pousa como um legítimo modelo de leão da savana, quando descansa esparramado no tapete da sala – o dono da porra toda; um felino doméstico dos tempos modernos. Invariavelmente, olha com desprezo e alicia a sua autoridade sobre nós, os mortais. Ele é Bastet, um deus ou uma deusa, que suplanta todas as insignificâncias de uma vida comezinha.


Voltando ao roedor, chamam-na vulgarmente de catita. Sendo pragmático, um serzinho tacanho. Mas – incrível – essa, pelo menos, não se sentiu acuada com a minha presença. E olhe que eu estava em posição desfavorável; indefeso, no banheiro.


Ela, vinda não sei de onde, se movimentava com uma precipitação ímpar, e fazia o que queria, talvez compreendendo, de alguma forma, a minha fragilidade ali. Eu simplesmente a olhei se bulir de um lado para outro, atrás de algo que depois fui descobrir, um mísero farelo da comida do Sunshine – que, nesse dia, por sorte, estava no veterinário, cuidando de seus lustrosos caninos, para uma nova e breve investida.


Não pude me desvencilhar do inconveniente. Tive de me manter inerte, como se nada acontecesse, controlando as emoções. Fiz de tudo para conter os ímpetos; mas algo sobrenatural percorria o ar.


Uma capivara, enfim, no meu banheiro, não teria a menor condição de fazer as estripulias da catita. Fui obrigado a me desligar completamente do lúdico, da fantasia. O animal, por sua vez, tomou ares de superioridade. A empáfia cintilava livre. Bobo, dei sugestão de me movimentar, e ela veio para cima, com os dentes à mostra; longos e finos: navalhas – já os senti em outra oportunidade.


Abandonei quaisquer estratégias; as expostas no Youtube indicaram a eliminação. Não mato uma formiga sequer. Não sou tão bonzinho assim, também. Não me considero onívoro. Sou carnívoro convicto e onívoro nas horas vagas. Mas não devo fazê-lo sem propósito algum. E eu, logo eu? Por quê? Não quero ser o motivo para o desespero de seu ninguém. Vi a dor de um rato preso por uma ratoeira. Ele se contorceu, retorceu, capaz de perder parte do corpo para se soltar. É desesperador.

Definitivamente, não consigo.


A minha única sorte, naquele momento, foi esperar no meu lugar. Havia um batente à minha frente e alguns apetrechos para espantar a figura afrontosa. Contudo, como esperado, não teve a audácia de ultrapassar a barreira dos cinco palmos. Ficamos a essa meia distância. Uma distância ínfima e ao mesmo tempo colossal. Sentíamos nossa existência por um fio. Até que, de súbito, pois não havia encontrado o que tanto queria, retirou-se como chegou, num passe de mágica. Escafedeu-se, para nunca mais.


Pensei, ainda, que fosse sonho, ou uma ligeira ressaca natalina; mas pude confirmar que não: deixou um odor forte; urina e fezes. Desinfetei a ponto de deixar a cerâmica do piso mais opaca. Suponho que Sunshine nem cogitou a animosidade. Não quis aflorar os seus instintos. Aí, sim, ele viraria um leão.


Ficamos assim: uma história de enfrentamento, eu e a catita; eu e a magnífica capivara, que veio me visitar e, certamente, reclamar o seu lugar.

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