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Adriano B. Espíndola Santos

Natural de Fortaleza, Ceará. Autor do livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora, 2018. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem crônicas e contos publicados nas Revistas Berro, InComunidade, Lavoura, LiteraturaBr, Literatura & Fechadura, Pixé, Ruído Manifesto, São Paulo Review e Vício Velho. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.   

DEUS DO CÉU!

O cheiro impregnava o lugar. Não era bem um cheiro de carniça – por eu ter morado perto a um matadouro, sei o que é isso. Era, de fato, um azedume entranhado, uma gordura repugnante que se alojava no céu da boca, nas narinas; em todo o corpo. Eu fui forçado a estar aí. Talvez uma sina; uma maldição. Com todos os meus defeitos, nunca imaginei sofrer tamanha aflição. Não me faz bem lembrar; mas, para aquietar a leitora, falarei sobre o meu calvário: era uma manhã de sol, dia 7 de fevereiro de 2018. Acordara com a presença do astro rei me puxando da cama dura – na comunidade parece raiar mais cedo; parece determinar ação na vida grossa do povo trabalhador. A luz atravessou a minha face amuada, cansada, de uma noite mal dormida, e me fez levantar. Não teria escolha, de todo modo, porque às cinco e meia em ponto a caminhonete do senhor Arnóbio passava para recolher a gente que vai trabalhar na carga e descarga dos gêneros alimentícios frescos. Devemos chegar cedo, como diz o homem, “para pegar o ‘ouro’; para garantir as vendas”. Descíamos, em média três ou quatro, rumo à Ceasa, para recolher os cestos que o senhor Arnóbio escolhera, nas negociações que fazia com os produtores. Segundo o mestre falava, era eu o “encarregado”, o que inspecionava o trabalho dos colegas. Para isso, nem um tostão a mais; mas, para não ser injusto, digo que o patrãozinho liberava algumas boas frutas e verduras para eu levar para casa. Na verdade, eu acabava distribuindo uma parte com os colegas de batalha, porque não achava justo sair com aqueles pacotões e eles sem nada. Pronto, abarrotados na caminhonete – uns por cima dos outros; ou saindo pelo ladrão –, uma D20 caindo aos pedaços, seguimos para a Feira do Bairro de Fátima, que ocorre sempre às quartas. Lá, encontramos mais um bocado de gente, o Alcides, o Tonho e o Miguel Arcanjo, que de anjo não tem nada; os ditos vendedores. Cada um com uma garganta de arrebentar fácil qualquer vidraça. As senhorinhas, as mais velhas, passavam com as mãos tapando os ouvidos; penso que isso assustava a freguesia, mas, enfim… O meu serviço ali estava quase terminado, porque teria de organizar os produtos nas respectivas barracas. Sim, o senhor Arnóbio era dono de três boas barracas, as mais sortidas; com a maior e melhor variedade. Eu gostava de trabalhar com o senhor Arnóbio, pois ele nos pagava em dia, no máximo tardava dois dias, até “apurar o dinheiro”, argumentava. Não era muita coisa, mas tinha um negócio que chamam de dignidade, um troço que nunca havia sentido. Em casa, menino, falavam que eu não ia dar para nada; que era um “condenado”; que seria uma “bucha de canhão do crime”. Tudo isso saía da boca de minha mãe, a pessoa que eu mais amava. Ela era amargurada, viúva, com três filhos para criar. Como não dava conta, como passávamos boa parte do tempo nas ruas, o meu irmão mais novo, que vivia doente, foi levado pelo pessoal do Juizado de Menores, e entregue a outra família. Não sei onde ele está; se perdeu no mundo – ou se achou. Só sei que dona Firmina, a senhora minha mãe, perdeu todo o gosto pela vida – o pouco que tinha – e desandou na cachaça e na devassidão. Ela teve um mal súbito e morreu. É o que sei. Fui eu quem cuidou do meu irmão do meio, e disso me orgulho. Perambulávamos pela cidade, para encontrar comida, para achar algum canto para a dormida. Passamos quatro anos assim, até achar uma dormida decente, no lar Menino Deus; eu já com dezoito anos. Arranjei uma ocupação de faxineiro de um hospital. Essa, sim, foi uma fase difícil; ficava contando os minutos para sair, para encontrar o meu irmão, porque o trabalho era literalmente uma bosta. Voltando ao principal, ao que a leitora quer saber: na saída do bairro, para pegar a condução, fui abordado pela polícia. Os homens me arrebentaram contra a parede, mandando que eu “não me bulisse”. Fizeram o desagrado do “baculejo”, de arrancar os ovos. Pediram meus documentos; dei, desconfiado, a minha identidade. Um dos PMs perguntou se eu não tinha vergonha de andar com um documento assim, todo estropiado. Eu tentei dizer que fui várias vezes ao posto para renovar e, não me deixando terminar, levei uma coronhada. Atordoado, caí ao chão e o mesmo homem me mandou que ficasse em pé… e me deu mais um chute na boca do estômago. Fiquei sem fôlego e perturbado. Quase desmaiei. O outro PM era mais tranquilo, mas não fez nada para impedir a agressão. Levantei-me com esforço, segurando a barriga, enquanto eles consultavam o meu nome no sistema. O PM disse que eu estava em cana, que o meu nome (José Oliveira Silva) indicava que eu estava com mandado em aberto. Fui ao IML e depois para a delegacia. Lá, sem falar com ninguém, fiquei logo preso, com três meliantes, numa cela que cabia no máximo um e meio, se fosse gordo. O policial proferiu, entredentes, arrastado, que eu poderia ficar calado e que teria direito a um advogado. O advogado custou a chegar, veio no final do dia, e disse que daria um jeito. Mandaram-me para uma audiência, que confirmou o decreto: roubo seguido de morte; uma porrada de anos na prisão. Baixei direto para o presídio. Ninguém quis me escutar, nem o advogado. Com dois meses e meio, o meu patrão foi me visitar; e disse que não acreditava naquilo, que isso era um erro grave. Ele mesmo pagou um outro advogado para mim. Vai-e-vem, sendo ameaçado pela ala do pessoal do tráfico, que pensava ser eu o tal do José Oliveira Silva que eles conheciam; que devia um grana medonha. Prometeram me matar. Aí, o milagre aconteceu, o novo advogado descobriu que se tratava de um tal de homônimo; um cara que teria o meu mesmo nome e, esse sim, tinha praticado o crime. Processo, juiz, testemunha, advogado, vai lá, vem cá, e, finalmente, com um ano e meio me soltaram, por dois motivos: provaram que na hora eu estava trabalhando e, com as fotos do criminoso, comparadas à minha, não teria nada a ver. Por que não fizeram isso antes? Meu Deus do céu, sofri demais; já estava com um pé na cova. Perdi um ano e meio da minha vida, por um erro do Estado; por um erro da minha cor; pelo erro de ter nascido pobre, sem costas largas. Voltei, no ato, a trabalhar com o senhor Arnóbio, que me confidenciou que, se não tivesse molhado a mão de um e de outro, o negócio não tinha andado. Eu disse a ele que não era para ter feito isso, que podia sobrar para ele. Ele retrucou, muito convicto: “Tenho uma multidão que me sustenta, meu filho!”. Disso, eu entendi que tem as costas largas. Não é problema meu. Relatei que, em agradecimento, trabalharia de graça para ele, o quanto ele quisesse. Ele não quis. “Não carece, rapaz!”. Estou, agora, tentando retomar o fôlego, pois o papoco foi grande. Deus do céu! Dai-me forças para viver nesse mundo injusto!

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