Adriano B. Espíndola Santos
Natural de Fortaleza, Ceará. Autor do livro Flor no caos, pela Desconcertos Editora, 2018. Colabora mensalmente com a Revista Samizdat. Tem crônicas e contos publicados nas Revistas Berro, InComunidade, Lavoura, LiteraturaBr, Literatura & Fechadura, Pixé, Ruído Manifesto, São Paulo Review e Vício Velho. Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.
PRAXES RUDIMENTARES
Sim, eu não devia ter tirado os pés de casa. Havia, talvez, dois meses que a cidade não chorava. Chorou, e muito, nessa segunda-feira. Seria uma espécie de presságio? Ainda que não acredite em coisíssima nenhuma, estou envolvido, contra a minha vontade, em superstições ancestrais, súplicas de vó, lamentos de mãe, e uma série de manhas para escapar do pior. Dia sim, dia não, me vejo pegado nessas circunstâncias. Quando menos espero, como hoje, estou me benzendo dos pés à cabeça. E adiantou? Quem sabe. E esse “quem sabe” alimenta o apuro por novas feitiçarias. Fato é que saí atoleimado, com pressa, bagunçado de um domingo escasso, catando os restos pela sala. Fui ao trabalho sem me ater às disposições de boa aparência. Não me preocupo com isso. Mas, dessa vez, não me sobreveio lucidez – eu acho – e meti uma blusa cáqui, uma calça quase do mesmo tom, um sapato preto e meias extravagantes, diria, com desenhos de banana – bem apropriadas para o lugar. Pode ser que um desavisado, no meio do caminho, tenha pensado que se tratava de um estilista, um modernista qualquer. Não. Eu estava indo ao escritório; uma firma tradicional, de pessoas que mantinham uma aparência reta, com o ardor de um guarda-chuva, nada mais. Nem bem aportei no lugar, deparei-me com a imagem bárbara de Luciana, um tanto assustada ao me encontrar. Mas por quê? Ficou estatelada na porta, como um zumbi, até que dei uma batidinha em seu ombro, ou seja, um mero socorro para lhe tirar da catatonia. Ela se fez de desentendida, virou a cara, e largou, entredentes, um bom-dia seco. Refleti que, assim, não precisava gastar a saliva; guarde esse bom-dia para uma melhor oportunidade, se houver. Não dei confiança quando passei pela mesa da Ester. Estava certo de que não levantaria a cabeça para trocar uma palavra sequer. Dito e feito: passei, e a múmia se fez ainda mais rígida, boquiaberta, como se olhasse na tela do computador uma notícia de fim de mundo. Mais adiante, esbarrei no Vicente, um senhor de seus sessenta anos, que nunca revela a idade. Mostra-se atlético, jovial. A meu ver, nesse dia, como se não repetisse as mesmas gracinhas grotescas, despistou; virou-se para pegar um café e logo abriu um sorriso armado, para declarar: “Ah, vejam, vejam! O nosso super-herói chegou!”. E aí ele fazia troça do meu cabelo, que conserva um cacho justamente na fronte. Que culpa tenho eu se o cabelo, com vida própria, insiste em ficar assim? E, para completar, a armadilha era, também, para fazer pouco do meu porte físico, franzino, miúdo. O jovem senhor caiu na gargalhada e chamou o séquito para o acompanhar. As risadas forçadas foram ganhando peso, cada vez mais intensas, fazendo com que o grande chefe saísse de sua sala acolchoada, revestida em ilusórias sedas, com ares do Norte – inclusive com uma bandeirinha americana na mesa de trabalho –, para chamar a minha atenção: “Que algazarra é essa, rapaz? Isso são modos, numa empresa de respeito? Já estou lhe esperando desde cedo para resolver essa bagunça que você deixou na sexta; o acúmulo da semana!”. E, como não havia mais meios para permanecer ali, dei meia volta, pedi licença ao projeto de esportista, o fanfarrão; como ele não saiu, tive de o empurrar, e adensei o passo para buscar a vida abundante, livre, além da porta de vidro. As vozes foram se desfazendo do meu juízo, até se tornarem imperceptíveis, nulas. Agora, enfim, sei que venci.