Adelaide Ivánova
(1982, Recife) é poeta, fotógrafa, tradutora e editora brasileira. Estudou Jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco e Fotografia na Ostkreuzschule, em Berlim. Publicou três livros – autotomy (…) (Pingado-Prés, 2014), Polaróides (Cesárea Editora, 2014) e O martelo (Douda Correria, 2016; Edições Garupa, 2017). Edita o zine anarcofeminista MAIS PORNÔ, PVFR! e escreve uma coluna mensal na Revista Pessoa. Participa de antologias, performances e exposições no Brasil e no exterior. Traduziu, entre outros, Ingeborg Bachmann, Hans Magnus Enzensberger e Paul Celan. Em 2017 fez parte da programação oficial de festivais como FLIP (Paraty, Brasil) e Latinale (Berlim, Alemanha). Vive e trabalha entre Berlim e Colônia.
PARA LAURA
em 1998 quando encontraram
o corpo gay de matthew shepard
sua cara tinha sangue por todo lado
menos duas listras
perpendiculares
que era por onde suas lágrimas
haviam escorrido
naquele dia o ciclista
que o encontrou não
ligou logo que o viu pra polícia
porque o corpo de matthew
estava tão deformado
que o ciclista achou ter visto
um espantalho
sábado passado em são paulo
a polícia matou laura
não sem antes
torturá-la laura
foi filmada ainda viva
por outro sujeito
que em vez de ajudá-la
postou no youtube o vídeo
d’uma laura desorientada
e quem não estaria
tendo sangue na boca e na parte
de trás do vestido
laura tem um corpo
e um nome que lhe pertencem
laura de vermont (presente!)
foi assassinada pela nossa indiferença
e pela polícia brasileira
tinha 18 anos
sábado passado.
A PORCA
a escrivã é uma pessoa
e está curiosa como são
curiosas as pessoas
pergunta-me por que bebi
tanto não respondi mas sei
que a gente bebe pra morrer
sem ter que morrer muito
pergunta-me por que não
gritei já que não estava
amordaçada não respondi mas sei
que já se nasce com a mordaça
a escrivã de camisa branca
engomada
é excelente funcionária e
datilógrafa me lembra muito
uma música
um animal não lembro qual.
A MULA
“um silêncio amamentado com veneno,
um silêncio imenso”
Paul Celan, tradução de Flávio R. Kothe
mede o valor de seu empenho
e afirmações tendo
como medida o peso que carrega
como boa mula não faz ideia
de quem a monta mas
está a seu serviço
como toda boa mula
empaca na beira do
abismo não morrer
é sua vingança
filomela sem língua
e mula
não pula por ódio
não por por esperança
(e nisso há uma diferença
fundamental).
a mula-lavínia
também teve sua língua
arrancada de lucrécia
mula e adormecida
não arrancaram
nada mas a chantagem
é também uma mordaça
a mula-talia também
dormia quando foi
violada
foi maury e mula
que conseguiu
abrir a boca
e ao virar asno
mudou o próprio
nome e o das coisas
a nova mula aprendeu
alemão e vergewaltigung
deixa de ser o que é
vira um som qualquer
dito com a mesma
entonação que cometa
fúria jacaré passarinho
fósforo procissão pedra
cacto
a mula empacada
quase muda ao menos
nunca foi surda
“até das pedras lhes ouço a desventura”
cada um tem o que diz
a mula em zarathustra
a mula de hilst
mas o rouxinol que canta
é o rouxinol macho.
o bom animal
quantos palmos
de largura tem
o seu quadril?
desconfio que
o meu seja
mais largo
ao menos
foi o que senti
ao sentar
em você
queria eu
ter sentado
na sua cara
gentil
como um bom animal
e submissa
como um bom animal
eu me alegraria
com sua língua em mim
e grata
como um bom animal
eu lamberia
sua cara
molhada
pegajosa
cheirando a mim
mas minha língua
minha pobre língua
só lambeu suas
pálpebras
Humbert Humboldt
eu não sou nenhuma
Henriette Herz
me deixe pousar
a cara em seu pau
e me afogar no
silêncio entre
suas coxas e testículos
sua magreza me insulta
Humboldt
mas para cada osso
Humboldt
me deixe lembrá-lo
há a carne
correspondente.