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Lucinda Nogueira Persona

Professora, poeta, ocupante da cadeira no 4 da AML.

A FACE POÉTICA DOS ENTRAVES

D as colinas cuiabanas ao Cerrado, do Cerrado ao Pantanal, olhos e corações se entrelaçam, dia a dia, numa fantástica e renovada contextura de nuvens. Evocar dados da identidade regional/universal e, neste caso, declarar o céu tão diversificado por nuvens, talvez seja um dos modos alvissareiros de ganhar o espaço da poesia, principalmente para os arautos de um novo livro. Foi lançado recentemente, pela Editora Entrelinhas, “Asas de Ícaro”: Versos de Enamoramento e seus Antônimos, do poeta Ivens Cuiabano Scaff, também médico, professor e membro da Academia Mato-grossense de Letras, ocupando a cadeira número 7. Essa obra, menção seja feita, traz um primoroso prefácio do poeta e professor Aclyse de Mattos.


Cada livro que lemos reverbera de modo particular em nossos sentidos, ora sombreando, ora iluminando, ora alvoroçando. Do silêncio das palavras, num texto, podem brotar ruídos de certa forma tão manifestos quanto os de uma cidade em movimento com seus motores, usinas, máquinas, construções, emergências e desesperos. Muitos livros, durante ou após leitura, absorvem demoradamente nossa atenção, não se distanciam e ficam teimando na lembrança. A eles voltamos por necessidade imperiosa, prontos a averiguar o escrito, antes que sejamos carcomidos por desconhecida obsessão.


Desta forma, um tanto quanto premeditadamente, chego ao forte vocábulo carcoma, infrequente no vozerio cotidiano, mas atuando sorrateiramente, sem se desgastar em seu modo muito próprio de ser. Esse termo, reporta ao peculiar universo encontrado em “Entraves” (Carlini & Caniato, 2017) de Divanize Carbonieri, um dos livros mais recentes no cenário da poesia, Prêmio Mato Grosso de Literatura. Um livro repleto de imagens que nos arrebatam a cada verso, num deles anunciando: “cada gomo roído da moranga / rememora a sua redondeza”. Aqui, há o sonho e o entendimento de uma dinâmica interna na estrutura orgânica do objeto.


O título da obra, também nome de um dos trinta poemas, acena parte da temática, na qual prevalece uma condição especial onde a voz lírica vai expondo em diferentes situações os julgamentos que essas merecem, seja uma lesão, uma insanidade, um calo, uma tramela, um tombo, um traumatismo. O conjunto se desenvolve a partir de estranhamentos colhidos no dia a dia, numa linguagem espessa, concisa, de versos livres, curtos, com ritmo febrilmente ativo para contar, por exemplo, as peripécias num guichê comercial: “em meio a outros seres humanos que / estão ali silenciosos sonhando com / enredos que você nunca vai conhecer / pessoas que você jamais irá rever”.


Diante da prodigalidade dos tropeços que convocam a esconjurar os sortilégios, a poeta emerge em fantasia e decide seu “Rumo” anunciando antes: “piso em pedacinhos roxos / flores em forma de sinos / destroços menores / dos meus desatinos”. Esses versos permitem a visão do artífice em sua trilha de acesso à poesia.


O trabalho poético é, por si, um irresistível avançar na escuridão e nos rigores da realidade. Da realidade plena, sujeita aos domínios do acidental. Isso fica patente nas elaborações da poeta, professora e doutora em Letras Divanize Carbonieri. O leitor, ao travar relação com o conteúdo gerado em “Entraves”, percebe de início que sua existência se ergue a partir de empecilhos impostos no indecifrável campo do acaso, ali, onde pulsam forças secretas. Porém, não é o acaso e sim um genuíno estado lírico que leva a autora a dizer: “no cerne rosa da fé / um igarapé de sangue”, no inquietante poema “Esporófito”, onde a escolha comum (que poderia ser lago de sangue) é abandonada, pois lago é parado, mas igarapé é caminho da água.


Ao reagir às vicissitudes, em dado momento, a poeta proclama: “no mal que nos embriaga / a alegria é uma adaga”. Muito disso pode ser visto nas páginas de “Entraves”. A matéria dessa autora se desvela a partir do real desordenado e seu crescimento é a sucessão de deslocamentos, lesões, colisões e sempre: “mais uma quina a estraçalhar seu pé”. Rastreando esse movimento criativo, pautado na captura de poesia desde a teia enferma da vida, parece válido apontar a indagação extrema de E. M. Cioran: “que sentido poderia ter para nós um acontecimento que não nos esmagasse? ”. Assim como o filósofo, o sujeito poético de “Entraves” abarca as experiências desastrosas, porquanto seriam essas o contingente maior na composição da verdadeira face do mundo, para, no entanto, dar a essas experiências a revigorante face da poesia.


Dentre os elementos desestabilizadores estão ainda os sons. O mais alto e angustiante de uma sirene, o mais profundo e grave do trovão e também um som gutural, humano, cujos timbres são modificados pela úvula, esse pequeno apêndice na região posterior da boca, chamado comumente de campainha. O envolvente poema “Úvula”, que por si já oferece assunto para uma resenha, mostra a gradação de sons possíveis na lírica de Divanize Carbonieri, incluindo “o látego / do grito / regurgitado”, remetendo à famosa série de “O grito” do pintor Edvard Munch.


Nessa produção poética, ecoa uma voz permeada de vivacidade, maturidade, argúcia e paixão pelos torvelinhos do mundo. Uma voz que não quer o objeto intacto e nem o caminho aplainado. Voz que chega energizada de diversos modos para energizar o leitor.

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